Como falar ao coração das pessoas que vêm, sedentas de Deus, à missa num domingo dedicado às mães? Como conjugar o Evangelho do domingo do Bom Pastor, no qual, segundo São João, Jesus se apresentou como a porta pela qual as ovelhas entram e saem e encontram pastagens, com a presença da mãe, num dia a elas dedicado?
Num primeiro momento, lembrei-me Rubem Alves que escreveu sobre o sentido da casa para os mineiros. Ele ressaltou que a sala é o lugar da aparência, onde visitas formais são recebidas e recebem, no máximo, o oferecimento de um cafezinho. Aos corredores e aos quartos têm acesso as pessoas, para as quais se permite a abertura e a intimidade. A cozinha, porém, é reservada para quem é permitida a participação na mistura que o fogo proporciona.
Os mineiros dizem que “cozinha é o melhor lugar da casa”. É o melhor lugar da casa porque tem fogo. Fogo que queima, ilumina e aquece. Fogo que provoca a realização do ideal do Criador – a unidade de suas criaturas. Os elementos que usamos na cozinha, por si só, jamais atingirão a unidade. É necessário o fogo que dá o sentido ao cozimento e proporciona a fusão de tudo, formando a unidade.
Na cozinha, arroz, óleo, sal, alho e água, distintos pela sua natureza se transformam numa comida que é realidade na mesa da maioria dos brasileiros. Mineiro então, nem se fala. E o arroz, quando refogado, faz com que suba aos céus, como um incenso da liturgia (ação) doméstica, a fumaça, em forma de ação de graças ao Criador por todos os benefícios concedidos à família.
Na cozinha, a família se encontra e, mesmo na diversidade de cada um de seus membros, é aquecida pelo fogo – do amor – que a torna unida. Na cozinha os causos são contatos e as lembranças dos acontecimentos vêm à tona. Sorrisos, lágrimas, saudades, encontros e despedidas encontram sentido ao redor do fogo que aquece e provoca a mistura. Fogo do fogão, fogo do coração. Fogo que desceu em Pentecostes, como eu em línguas, e que proporcionou a unidade, a força, a palavra proclamada e de fácil entendimento. Fogo que não dispersa, mas que une. Fogo que circula nas veias da Igreja, da família, do corpo de todo ser humano. Fogo que caminha na frente, como a coluna no deserto. Fogo que foi trazido pelo próprio Jesus de Nazaré e que queima toda diversidade humana, todo afastamento, todo medo, toda dor e todo pranto.
Diante disso é que encontrei sentido de viajar no tempo e voltar lá em Ubá, na minha infância e adolescência. Entrar em casa e rever os poucos móveis, o chão de cimento amarelo, a sala toda encerada – com cera parquetina amarela – a cozinha – o melhor lugar da nossa casa – com as vasilhas todas de alumínio, muito bem limpas, como um espelho, pois ao lavar, usava-se areia para ficar ainda mais brilhantes. E, como um espelho, panelas, frigideiras e caldeirões oscilavam penduradas na prateleira.
O arroz era ritualmente preparado às 10 horas da manhã e, também, à tardinha. Almoço e jantar eram sagrados. Coisa pouca. Mas nunca faltava. O cheiro do arroz refogado inundava a pequena casa, tão grande de significados e sentimentos. A atenção para que tudo fosse limpo e bem feito, dava a continuidade do aconchego que todos tivemos – os quatro irmãos – em nossa infância, juventude e mesmo agora, numa fase mais madura. Não há problema com a idade, para a minha mãe somos sempre os meninos. Pois ela sempre diz: “os meninos vão chegar”.
E ai, refogar o arroz no altar para falar de Deus, de seu Filho Jesus de Nazaré e de mãe foi como tocar, sem encostar a mão, no coração de cada um ali presente, já que o momento era familiar e estávamos num domingo dedicado às mães, na casa do Pai do céu. Casa do Pai – lugar onde os filhos se encontram. Lugar onde a palavra é partilhada, as histórias são contadas e o pão é repartido. Palavra dita aos filhos para reforçar a unidade dos irmãos. Pão da vida, pão do céu para fortalecer os filhos na caminhada.
O sentido da porta, aludido por Jesus, no Evangelho de João, que dá às ovelhas a liberdade de ir e vir, e lhes concede prados verdejantes para uma suculenta pastagem, pode ser encontrado, também, no ventre, no colo, no seio, no leite e no sangue, nas noites mal dormidas, nas preocupações cotidianas delas, mães, que também doam suas vidas e o que mais almejam, não é diferente do que almeja Jesus, pois foi para que todos tenhamos vida em abundância que Ele veio. O amor de Jesus e o amor de mãe podem ser vistos na mesma intensidade, pois ambos constituem o amor gratuito, que não desiste e que se doa plenamente.
Nas portas das penitenciárias, quando assistimos pela TV a notícia de uma rebelião de presos, sempre vemos as mães procurando saber notícias de seus filhos. Ladrões, assassinos, pretos e, em sua maioria, pobres todos tiveram e muitos ainda têm, um colo, um arroz refogado, um feijão aguado e uma verdurinha, mesmo quando chegam às escondidas, na calada da noite, para refazer-lhe as forças. Não importa quem seja, será sempre um “filho da mãe”.
Lembro-me do meu tempo de criança. Minha garganta se inflamava sempre. Acordava no meio da noite e no escuro, com medo e com dor, a minha salvação era gritar: “Maeee”. Ela chegava e perguntava o que havia acontecido. Eu lhe pedia: Traz um copo d’água pra mim. Junto com a água a presença que suavizava a dor e encorajava-me para enfrentar a escuridão da noite. Mais uma vez o Pastor se faz reconhecido quando está atento e cuida de suas ovelhas. Nas noites de minha infância Ele se fazia presente na sentinela dela, a mãe que, com um copo d’água garantia a força para o enfrentamento da noite escura de meus medos e fraquezas, frente à minha limitação.
E assim, e de muitos outros modos, poderia tocar o coração de toda aquela gente, faminta de Deus, que esperava que eu lhes desse o alimento. A palavra foi proclamada para os ouvidos ouvirem, os olhos verem e todo o corpo se inteirar, a partir do cheiro que inundou todo o lugar – cheiro de arroz refogado (incenso doméstico) – e reportar-se ao aconchego de seu lar, de seu berço e de suas raízes.
Padre Carlos Henrique Corrêa Senna – Dia das Mães – Maio de 2014.